quinta-feira, 5 de maio de 2016

Filosofia alimentar

Com motivações diferentes, cada vez mais jovens aderem a dietas que refletem também um modo de vida. Muitos se opõem à exploração e à criação de animais para serem usados na alimentação de humanos e se submetem a planos alimentares que, além de saudáveis, são politicamente corretos. Mas nem sempre é fácil seguir à risca, pois, muitas vezes, significa parar de comer algo que muitos deles apreciam, passar fome em eventos sociais, ter dificuldade em encontrar bons restaurantes e, principalmente, buscar conhecimento para não prejudicar a saúde. A nutricionista especializada em nutrição vegetariana Andreia Torres diz que a maioria das pessoas que a procura com o interesse em abolir o consumo de carne tem entre 18 e 25 anos. "Em geral, são influenciadas por amigos ou namorados preocupados com o bem-estar dos animais ou são adeptos da prática de ioga."

Apesar da mudança de hábito notada nos consultórios, os jovens ainda são minoria entre os vegetarianos. De acordo com o Target Group Index, do Ibope Media, a proporção de homens e mulheres que seguem a dieta sem carne é a mesma: cerca de 8%. A porcentagem, porém, é maior entre as pessoas de 65 a 75 anos. Nesse grupo, o percentual é de 10%. Já entre os jovens, de 20 a 24 anos, o índice é menor (7%), assim como o registrado entre homens e mulheres de 35 a 44 anos.

Os vegetarianos ainda têm que lidar com o preconceito. Quase todos reclamam das caras feias que recebem ao falar do hábito alimentar. Pensando nisso, o chef Flávio Giusti criou, no Youtube, o programa Vegetarirango, em que, com muito humor, ensina a fazer "comida vegetariana sem frescura", algo que muitos acham impossível. "É uma ideia que se tem por aí: de que vegetarianismo é frescura. Quero mostrar que não é bem assim."

O servidor público Pedro Arcanjo Matos, 27 anos, não come carne há quase 10 anos. Começou a praticar o vegetarianismo e, com o tempo, tornou-se vegano — não come nem usa nada que tenha origem animal. Ainda que gostasse muito de carne, acredita que foi a melhor escolha. Ele conta que até fez um ritual: "Foi uma questão ética e não de saúde. Por isso, fiz uma despedida oficial: comi camarão ao alho e óleo". A paixão, no entanto, passou, o que ele atribui a uma mudança no paladar. "Acho que fiquei mais sensível ao gosto das coisas e mais aberto a experimentar outras. Foi a mudança mais positiva na minha vida."

O vegetariano de Brasília passa pelo grande desafio, que devia ser simples, de encontrar onde comer. A dieta sem carne restringe muito as opções de estabelecimentos. Pedro, por exemplo, diz que mudou a rotina alimentar "na tora", à base de muito biscoito e outros carboidratos. A nutricionista Andreia Torres, porém, alerta: "A substituição das carnes por fontes vegetais com pouca proteína e muito carboidrato simples leva a um ganho de peso, principalmente na forma de gordura corporal". Ela costuma fornecer a seus pacientes uma apostila de cerca de 80 páginas com informações básicas e receitas do que é necessário para se tornar vegetariano.

Jovem e conectado, Pedro teve a ideia de um projeto: fazer um levantamento dos lugares vegetarianos e/ou veganos na cidade. Assim, criou um blog, o Distrito Vegetal, em 2009. Nele, além de fazer resenhas de restaurantes e sugerir lugares recém-abertos, dá receitas que recebe de leitores e outras dicas em geral. Ele vibra pela evolução de Brasília nesse quesito: "Quando comecei, não tinha quase nenhum lugar onde era possível comer. Atualmente, tem mais de 100. Isso é ótimo". O problema ainda são os preços, geralmente mais altos. Outro objetivo do Distrito Vegetal seria aproximar ainda mais os vegetarianos e os veganos. "As refeições são agregadoras, não dá para negar. Com o veganismo principalmente, a gente fica um pouco isolado." Pedro se orgulha de ter influenciado positivamente uma tradicional lanchonete da cidade. "Sempre que saíamos da balada, meus amigos e eu íamos lá e só comíamos batata frita. Conversamos com o pessoal — acho que outras pessoas também — e hoje eles oferecem hambúrguer vegetariano".

A comida acabou ganhando um papel central na vida do servidor, pois cada refeição precisa ser muito bem pensada. Namorar alguém que não fosse vegetariana até se tornou um problema. "Os relacionamentos que tive com não vegetarianas acabaram mudando a dieta delas. Acho que fiz algo bom pelas meninas. Seria muito difícil ter algo com alguém que come carne", confessa. Pedro reconhece tanto o preconceito contra vegetarianos e veganos quanto a chatice de alguns deles: "Muito querem fazer pregação aos outros, e isso não é legal". Na visão dele, não há como ser tão purista na sociedade em que vivemos, uma vez que temos necessidades. 

Quando a dieta vira negócio
A reclamação de todo vegano é a falta de lugares para comer. Com alguma experiência em um restaurante vegetariano de Brasília, a chef Marina Corbucci, 29 anos, começou a preparar marmitas veganas em casa para vender sob encomenda. O negócio foi crescendo, até que ela decidiu abrir seu próprio café, onde um dos mais famosos quitutes é o pão-sem-queijo, uma versão vegana do pão de queijo. A ideia surgiu da simples experiência de vida dela: "Eu mesma, quando mais nova, tinha muita dificuldade para comer fora de casa, então quis atender essa demanda". A chef se orgulha de ter também clientes que não são nem vegetarianos. "Eu queria também poder mostrar a comida vegana para o público geral." Com um ambiente mais descontraído, a maior parte da clientela tem entre 25 e 35 anos. Marina deixou de comer carne aos 16 anos. Um período fora do país, aos 21, fez com que ela fosse obrigada a cozinhar mais. Foi aí que se apaixonou pela gastronomia. Depois de formada em psicologia, percebeu que aquela não era a sua vocação. O Café Corbucci foi o primeiro restaurante vegano da capital e é referência entre os moradores daqui.

Uma tradição familiar
Janine Moraes/CB/D.A Press
Enquanto para alguns se tornar vegetariano é um desafio, já que precisam preparar a própria comida, para outros, há a facilidade de contar com uma família inteira adepta da dieta. Esse é o caso da família Riedel, que já está na quinta geração de vegetarianos. A segunda geração é a do advogado Ulisses Riedel, 80 anos, ativista do vegetarianismo. Os irmãos Rogério, 27, e Paulo Fontes, 25, advogados, e a prima Patrícia Resende, 30, nunca comeram carne. Patrícia e as duas irmãs, quando pequenas, sentiam até nojo, pois, desde cedo, os pais delas esclareciam a crueldade que a indústria da carne praticava contra os animais. Hoje, ela tem uma filha de 7 meses, Letícia, a qual pretende criar da mesma forma: "Meu marido não é vegetariano, mas simpatiza com a filosofia. Decidimos que não teria carne aqui em casa e que nossa filha seria criada como eu. Quando tiver idade para decidir se quer continuar assim ou não, vai ter toda a liberdade".

Numa época em que não havia facilidade de internet, Patrícia tinha como fonte de informação os próprios pais, as palestras do avô Ulisses Riedel e os livros de teosofia. Rogério e Paulo precisaram pesquisar ainda mais, pois não era costume dos pais conversarem sobre o assunto. "Começamos a estudar muito porque, sempre que dizíamos que éramos vegetarianos, nos enchiam de perguntas e precisávamos saber responder", conta Rogério, que foi além e, no início deste ano, tornou-se vegano, abolindo do cotidiano qualquer produto de origem animal que submeta animais à exploração. Essa transição na alimentação foi complicada no início, tanto por conta do seu bem-estar quanto pela falta de restaurantes disponíveis. Mas, atualmente, ele se sente muito mais disposto e, assim como Pedro Matos com seu blog, Rogério criou um aplicativo para celular com opções de onde comer, o Guia Vegan Bsb.

Janine Moraes/CB/D.A Press
Paulo admira a disciplina e a força de vontade do irmão: "Eu não consigo dizer que não vou mais comer tal coisa e, simplesmente, parar. Com o ovo, eu consegui parar porque o gosto virou referência de um filme que assisti, mas eu não deixo de comê-lo se está na receita de um bolo ou em uma massa, por exemplo". A restrição dele, assim como a do irmão, vai além da alimentação: "Nós só usamos cinto de borracha, nunca de couro. Mas é muito difícil encontrar aqui no Brasil."
A preocupação deles é com o sofrimento pelo qual a indústria faz os animais passarem. Eles não concordam com a forma como são tratados e lamentam a cultura da carne cultivada no Brasil. O preconceito ainda existe. Quando criança, Rogério passou por uma situação muito desagradável em uma visita a um colega de escola. Certa de que a opção por não comer carne não passava de um capricho, a mãe do colega e dona da casa escondeu pedaços de carne no meio da comida de Rogério. "Ela perguntou se estava gostoso e eu não seria mal-educado de dizer que não, então, ela começou a gargalhar e confessou que havia carne ali", lamenta.

Viajado, Paulo compara as condições do vegetariano aqui e em outros países: "Em qualquer outro país, é muito mais fácil. Até na África do Sul, um lugar economicamente inferior ao Brasil, tinha opções vegetarianas e veganas em todo restaurante que eu ia". O irmão, Rogério, critica: "O negócio é que aqui 3% do PIB nacional vem da indústria da carne".